Sócrates: “Assim, portanto,
naquele que não sabe, existem, acerca dessas coisas que acontece ele não saber,
pensamentos verdadeiros sobre as próprias coisas que não sabe?”
Mênon: “Com certeza:!”
Sócrates:“ E agora estes
pensamentos se erguem nele, como se de um sonho se tratasse”*
*Platão, Mênon, 85c.
Introdução
Para
nós, analistas junguianos, o fato psicológico é tudo aquilo que podemos contar
para resgatar junto ao paciente, suas potências soterradas na inconsciência, na
medida em que é o fato psicológico que nos assegura conhecer a realidade
psíquica do indivíduo.
A
realidade psíquica de maneira instintual cria uma série de tensões internas
para se expressar.
O
Arquétipo seria uma matriz de pensamento que vem, através do tempo e de
civilizações sendo utilizado pelo coletivo com nenhuma ou pouca alteração e
passa a ser um caminho de comunicação entre o indivíduo e o mundo bem como,
comunica ao ego seus conflitos, seus desejos e suas potências desconhecidas ao
próprio sujeito.
Exemplos
arquetípicos são o mito do herói; Deus; a grande mãe; o velho sábio; o mago; a
feiticeira; a fada; os duendes; os gigantes; o homem ideal e a mulher ideal; a
bruxa; a criança interior e uma série de ideologias que se repetem ao longo da
existência da humanidade, como por exemplo, a busca insana pelo poder.
Através
da identificação com o arquétipo e posterior desidentificação, o ego, que
também é um arquétipo, se empodera tendo ao seu dispor forças que até então por
estarem projetadas no arquétipo e com ele identificadas, não lhe atravessavam.
Dessa
maneira, o arquétipo passa a ser uma via de acesso à realidade psíquica do
indivíduo, bem como de sua possibilidade de se expandir além da atitude
neurótica.
A
pura identificação com o arquétipo, sem que se instale o processo de
individuação, o qual consiste em conhecer e se separar do todo para se inserir
no contexto social de modo efetivo, proporciona a inflação ou deflação egóica.
Conhecer
os arquétipos de um indivíduo, um grupo ou nação é estabelecer uma comunicação
salutar que resultará em fortalecimento através do acesso que se abre às forças
instintuais negligenciadas ou soterradas.
“O
imaginário, ou seja, o conjunto das imagens que constitui o capital pensado do
homo sapiens, aparece-nos como o grande denominador fundamental onde se vêm
encontrar todas as criações do pensamento humano.”
Gilbert Durand in: “As
estruturas Antropológicas do Imaginário”.
O
fato psíquico se dá através das percepções e da subjetividade. Os sentidos e a
inteligência percebem uma imagem do mundo, na qual o indivíduo passa a viver e
a ela corresponder.
A
totalidade da realidade não é concebível ao indivíduo. No entanto, possuímos
quantidades de sinais dessa realidade total, o que nos leva a perceber
sensorialmente e intelectualmente que existe mais de realidade do que aquilo
que nos foi dado a perceber.
Este
também passa a ser um fato psíquico. Uma realidade psíquica que nos imbui de
curiosidade e muitas vezes nos faz aventurarmos por outras camadas psíquicas.
Tentar
perceber o que está mais além só é conseguido por etapas e pela conjunção de
várias linhas de estudo, além de observação, relações e enfim, da soma de
experiências.
Conhecer
a realidade total é impossível, se não, indesejável. Mas, conhecer a sua
própria realidade psíquica é essencial para ser sujeito e não um mero objeto.
Dentre
os sinais da realidade mais abrangente que um sujeito não pode conceber,
existem os sintomas, delírios, os sonhos, o complexo psíquico autônomo
inconsciente; o arquétipo.
O
arquétipo não pode tornar-se consciente porque sua essência é psicóide. E
somente com a técnica aplicada da imaginação ativa que, básicamente, utiliza-se
de uma cisão entre o sintoma e o indíviduo é que é possível conhecer o aspécto
arquetípico que influencia o ego e que o faz fazer coisas de que o proprio
sujeito julgou ser incapaz.
A
“forma” do arquétipo é a própria faculdade de pré-formação que significa a
capacidade inata de sempre buscar organizar o mundo como dar nomes as coisas,
por exemplo. As representações arquetípicas advêm desta faculdade de
pré-formação, de modo que, estas não são, elas mesmas, herdade, são antes,
utilizadas para descrever, compreender e satisfazer o desejo de organizar o
mundo. Para exemplificar podemos citar a astrologia; a numerologia; as diversas
tipologias, etc, etc – todos eles sistemas inventados para que o
observador possa organizar o mundo.
Assim
como os instintos, a faculdade de pré-formação só será comprovada a partir de
sua manifestação concreta e a manifestação do arquétipo é a imagem que o
representa.
Podemos
concluir que os arquétipos são imagens dos instintos, visto que, os instintos
não são apenas impulsos de dentro para fora como também participam das
representações ou do mundo das formas.
Desse
modo, os instintos participam nas expressões de ações e reações tanto quanto no
modo como formulamos aquilo que imaginamos. Afora que são eles, os instintos,
os responsáveis por nossas sensações e afetos.
Os
instintos levam o humano a repetir certas manifestações que podem ser
observadas através do tempo entre todos os povos.
Essas
manifestações que representam a realidade ou mundo das formas são os
arquétipos.
Princípio de individualidade
O
princípio de individualidade faz parte da natureza do humano. Tendo isso como
verdade lhe é instintual buscar a diferenciação. Há um empenho natural em se
adquirir individualidade e para lutar contra a igualdade inicial. Lembremos: no
princípio era o caos.
Esse
processo de individualidade se faz instintivamente na construção do ego. Porém,
o ego sofre pressões do superego-princípio da moral coletiva e do id -princípio do prazer, bem como das
pulsões de Eros -princípio de vida e de
Tânatos – princípio de morte.
Ao
lutar pela individualidade o ego ou o sujeito, se expõe às regras morais e à
consciência de rebanho, instalando-se, portanto, os mecanismos neuróticos que
por sua vez tornará o ego cada vez mais distante de sua sensibilidade
instintual, de seu conhecimento e proximidade para com os seus instintos.
Não
é raro encontrarmos pacientes nitidamente incapazes de discernir aquilo que
deseja do desejo do outro, ou mesmo, distinguir qual é o seu desejo ou ainda,
incapaz de verbalizar a emoção que sente frente a algum acontecimento ou mesmo
nesse seu presente momento. Faça o teste: o que você está sentindo agora¿ E não vale como resposta algum tipo de
justificativa, a resposta a essa pergunta deve ser emocional, ou seja, dizer
qual é a emoção que está sentindo. Se caso não estiver sentindo qualquer tipo
de emoção, melhor consultar o seu pulso para ver se ele ainda pulsa, pois todos
nós que estamos vivos estamos também afetando e sendo afetados por alguma
emoção.
Ao
se entregar à consciência de rebanho, sabe-se perecer em sua individualidade.
Por outro lado, ao se entregar aos seus instintos sabe-se perecer na dissolução
do mesmo caos.
Entregar-se
à consciência de rebanho ou entregar-se a inconsciência instintual leva, portanto,
a mesma indiferenciação de ser eu um sujeito de ação.
Ainda
em sua individualidade o sujeito aprende a classificar o caos de onde partiu,
humano possui atributos dicotômicos: bem-mal, feio-bonito, quente-frio,
luz-treva, etc. O humano acaba por ser vítima dessa dicotomia em sua luta por
sua individualidade, porque a dicotomia compromete o desempenho da autonomia do
sujeito, a medida em que o ego tem de optar entre um e outro, não deixando
margem as atitudes temperadas.
A
individualidade é o que há de singular no indivíduo. É uma tendência, um
impulso instintual que tende a diferenciação e separação psicológica de uma
coletividade.
O
desenvolvimento da individualidade se faz mediante a relação pessoal e social.
Pela relação da psique com o inconsciente coletivo, bem como do inconsciente
coletivo com a psique.
Esta dinâmica da energia psíquica que
atravessa todo o aparelho psíquico tem seu agente de veiculação tanto no
social, quanto no individual no arquétipo-Anima/ Animus que significam
respectivamente a ideia de mulher na psique do homem e a ideia de homem na
psique da mulher.
“Razões
tiradas da experiência me levam a declarar que os conteúdos do inconsciente, em
comparação com a atitude da nossa consciência reclamam os mesmos foros de
realidade em virtude de sua obstinação e persistência, como os objetos reais do
mundo externo”. Carl Gustav Jung
*Jung, C.G- “Tipos psicológicos”- Ed. Vozes Ltda, Rio de Janeiro-RJ-1971 (pág.387,454)
O Processo de Individuação
O
processo de individuação (que não é o processo de individualização) pressupõe
que o sujeito se abra para a multiplicidade de seu próprio devir através da
união dos opostos conhecidos na dicotomia. Dessa união de opostos surge a
multiplicidade elevando o sujeito a uma existência de composição entre todas as
dicotomias apresentadas pelo meio.
Estar
atento e abrir-se para compreender e acolher tal dinamismo é o que Jung chama
de processo de individuação. Por isso, este processo não pode ser um processo
de individualização, mas de individuação (indivíduo + ação), porque nele
está contida tanto a preocupação com fatos do meio social quanto com os fatos
do meio psíquico para a elaboração da identidade.
Sartre
chama de “esquema” a dinâmica afetiva de imagem. O “esquema” se constitui em
factividade e não na substantividade geral do imaginário.
O
“esquema” se assemelha ao que Piaget chamou de “símbolo funcional” e ao que
Bachelard chamou de “símbolo motor”. Faz a junção entre gestos inconscientes do
sensório motricidade, entre as dominantes reflexas e as representações.
São
estes “esquemas” a base de formação da imaginação, eles estão para o imaginário
assim como o esqueleto está para o corpo.
Como
diz Sartre em seu texto L´Imagination, o esquema surge como aquele que
“presentifica” os gestos e a pulsões inconscientes.
Estes
gestos e pulsões em esquemas, em contato com o ambiente natural e social vão
determinar os grandes arquétipos tal qual C.G. Jung definiu em Tipos
Psicológicos.
Por
assim dizer,os arquétipos constituem as substantificações dos esquemas. Jung
busca esta noção do arquétipo em Jakob Burkharedt e a traduz em imaginário de
“origem primordial”, de “protótipo”.
Para
Jung, o arquétipo possui um trajeto antropológico, vendo neles o estádio
preliminar, a zona matricial da ideia e sublinha a importância essencial dos
arquétipos como constituintes do ponto de junção entre o imaginário e os
processos racionais.
Essa
ligação pode ser percebida em duas possíveis conexões entre as imagens e os
pensamentos: agrupam-se várias imagens em uma ideia, ou, uma imagem suscita
várias ideias. De forma que o conceito acabaria sendo constituído por uma
espécie de indução arquetipal.
“Os arquétipos se ligam a
imagens muito diferenciadas pelas culturas e nas quais vários esquemas vêm se
imbricar.” – Gilbert
Duran in: As estruturas do imaginário.
A
roda, por exemplo, é um arquétipo de esquema cíclico. Por outro lado, a
serpente é apenas um símbolo do ciclo, por que a serpente é polivalente em
matéria de simbologia, enquanto a roda só pode ser associada ao cíclico, não se
percebe que outros significados podem dar à roda, já a serpente tem vários
significados.
O
arquétipo está mais voltado à ideia enquanto o símbolo traduz mais um
substantivo.
O
símbolo indica algo desconhecido, um mistério. Veicula um significado vivo e
subjetivo que exerce sobre o indivíduo uma poderosa atração ou fascinação. Age
como um mecanismo de liberação e de transformação de energia psíquica.
O
signo é a unidade de significação que representa uma unidade conhecida.
O
símbolo é semântico e o signo é o sinal da cruz usado na adição e multiplicação.
O
símbolo é a cruz que inflama sentidos no indivíduo e que advém do arquétipo da
roda.
Os
símbolos são um produto espontâneo da psique arquetípica. Não se fabrica um
símbolo como se fabrica um signo. O símbolo é descoberto e portador de uma energia
psíquica.
A
psique arquetípica está em incessante atividade de criação dentro de uma
corrente de imagens simbólicas vivas que é mais percebida através dos sonhos e
das fantasias.
Os
símbolos penetram no ego que se identifica com eles e com eles trabalha de
forma inconsciente ou passam para o ambiente externo, através de projeções, o
que leva o indivíduo a ficar fascinado e envolvido com o objeto que sustenta a
projeção.
Diz
Jung que o mais importante é diferenciar o consciente dos conteúdos inconscientes.
É
preciso, isolar os conteúdos inconscientes e para tal, Jung criou a técnica da
“Imaginação Ativa”. Através dela personifica-se o conteúdo que chega à
consciência através de sonho, fantasia ou projeção, estabelecendo depois, junto
com a consciência, um contato com estes personagens internos.
Deste
modo se despotencializa o conteúdo psíquico para que não mais exerça seu poder
sobre a consciência.
Como
os conteúdos psíquicos possuem certa autonomia pode-se dizer que com a
personificação destes conteúdos estamos em uma inter-relação com o inconsciente
mediante cisão ego/conteúdo.
Na
sequência de símbolo e signo, pode se considerar mito como sistema
dinâmico de símbolos e arquétipos, que sob o impulso de um arquétipo, tende a
compor-se em narrativa. De modo que o mito é uma racionalização em que os
símbolos são descritos em palavras e em que os arquétipos traduzem-se em
ideias.
Ele
explica a narrativa histórica e lendária promovendo um sistema filosófico ou
uma doutrina religiosa através da identificação.
Vimos
que existe um instinto de individualidade que busca se diferenciar do caos, que
busca ser diferente das massas. Porém, em compensação, existe os instintos
gregários, que busca estar junto à coletividade.
É
admirável o quanto há de coletivo na nossa, assim chamada, psicologia
individual. A força superior do coletivo é de tal ordem que o indivíduo pode
desaparecer por completo atrás deste aspécto.
A
psicologia social não pode prescindir da tendência à imitação. Sem ela seriam
impossíveis as organizações de massa, onde a base da ordem social não é a lei,
e sim a imitação, conceito este que abarca sugestionalidade e contágio mental.
Advém daí a rigidez individual em determinada “pose”, características,
atividades e desejos.
Para
descobrir o que é autenticamente individual, torna-se necessário uma profunda
reflexão.
A individuação é um processo de
diferenciação que tem por meta o desenvolvimento da personalidade individual,
levando-se em conta sua relação com o social coletivo quanto às categorias de
forças soterradas na inconsciência.
Os
impulsos vitais compreendem vida e pensamento mítico.
As
ideias coletivas inconscientes, bem como as conscientes, se entrelaçam tanto
nesses impulsos vitais quanto nos fatos sociais.
De
forma que o processo de individuação implica
em tornar consciente os arquétipos e outros conteúdos que inconscientemente
dinamizam uma individualidade.
Trata-se
de realizar o seu “si mesmo” naquilo que tem de mais rebelde a toda comparação.
Este, no entanto, é um processo sem fim. Começa no primeiro suspiro de vida e
só termina no último suspiro de vida. Por isso que não existe um ser humano
“pronto e acabado” ou “resolvido”. O ser humano está sempre criando e
recriando.
É
neste processo que se revelam forças instintuais que foram reprimidas e
soterradas no inconsciente, daí que a análise deverá decorrer da compreensão
destes conteúdos como categoria de força e não apreciados ou depreciados como
categoria moral.
No
processo de individuação aplica-se a
apreciação como categoria de força a todo conteúdo revelado seja ele o
arquétipo de Deus ou do Demonio. Como a
moral, é também em nossos tempos, um instinto, fica delimitado o território de
análise sobre o mais terrível parâmetro moral: a fidelidade a si mesmo.
Toda
verdade é sinuosa à medida que se leva em conta à subjetividade daquele que se
diz possuí-la.
Mediante
a fidelidade e honestidade a si mesmo aplicando a categoria de força aos
conteúdos psíquicos sejam do arquétipo de Deus ou do Demonio que o indivíduo
encontrará a saída da neurose.
Infelizmente,
é a realidade moral que decide entre saúde e doença para um neurótico.
A
neurose que se caracteriza por uma rigidez psicológica, encontrará no processo
de individuação um traçado vital,
pontos de vista, princípios, ideias, verdade de validade efémera. Bem como
encontrará, nuances que transformarão a dicotomia em pluralidade.
É
devido a este aspécto de multiplicidade da verdade que se cria a inserção do
indivíduo no coletivo, embora ele esteja dele diferenciado psicologicamente.
O
acolhimento às suas próprias diferenças, suas próprias multiplicidades e verdades
efémeras, capacita o indivíduo a acolher o social coletivo sem nele se perder
psicologicamente.
Por
outro lado, o processo de individuação é confundido com a tomada de consciência
do eu. Se fosse assim, não passaria de exercício egocêntrico e de auto-erotismo.
A individuação é um processo de tomada
de consciência sim, mas, consciência da pluralidade tanto do coletivo quanto do
próprio indivíduo.
“Só
pela imaginação vislumbro as coisas que podem vir a tornar-se realidade, e isso
é o suficiente para levantar um pouco o terrível interdito. O suficiente para
que eu me abandone a ela sem receio de enganar-me”. André Breton, Manifeste
du Surréalisme
Conclusão
Seria
completamente absurdo atribuir-se ao inconsciente uma psicologia consciente.
Seria como se as garras da intelectualidade tomassem as rédeas até mesmo do
imponderável e caótico.
A
psique inconsciente é de um caráter instintual e nem pensa segundo os critérios
daquilo que a consciência entende por pensamento.
A
psique inconsciente cria imagens que possibilita à consciência uma dada
identificação com a sua situação, e a partir daí ocorre todo um processo
intelectivo onde respostas são encontradas. No entanto, a imagem está
impregnada de idéias e sentimentos, menos de qualquer reflexão racionalista,
por isso, Jung sugere serem tais imagens mais aproximadas de visões artísticas
que respondem ao mais profundo da natureza do indivíduo ou coletividade.
É
natural que o problema subjacente apresentado na imagem, seja esta arquetípica
ou não, tenha suas raízes tanto nos processos instintivos quanto nas aspirações
mais idealistas, porque naturalmente, o indivíduo ou a coletividade tem se
ocupado apaixonadamente daquela questão.
O
inconsciente reage aos conteúdos conscientes e apesar de sua reação ser rica em
significado, não é ele que possui a iniciativa e nem dá continuidade ao
processo. Cabe ao ego, a consciência, utilizar a energia dos conteúdos inconscientes
para instalar racionalmente e conduzir todo o processo de individuação.
Sonia Regina Lunardon Vaz
