Mesmo o homem que é puro no coração
que antes de dormir faz sua oração,
Pode se tornar um animal.
Se o lobo de dentro o chamar
e a lua brilhar em seu quintal.
(Anônimo)
Criatura do imaginário, o lobisomem é a representação dos sentidos mais selvagens e libidinosos do humano. E, como toda energia psíquica não pode ser julgada pela categoria moral, temos que o lobisomem, em diversas culturas, é tido ora como benfazejo, ora como malfazejo. De qualquer modo, é sempre representante de poder e força.
No Brasil, existem muitas versões dessa lenda, variando de acordo com a região. Uma versão diz que a sétima criança em uma sequência de filhos do mesmo sexo tornar-se-á um lobisomem. Outra versão diz o mesmo de um menino nascido após uma sucessão de sete mulheres. Outra, ainda, diz que o sétimo filho homem de um sétimo filho homem se tornará a fera.
O número sete é um número místico, representante da totalidade do universo em movimento. Simboliza a conclusão do mundo e a plenitude dos tempos. Para os Dogons, povo primitivo, o sete é símbolo da união dos contrários, da resolução do dualismo e, por isso, de perfeição.
Em algumas regiões, o lobisomem se transforma à meia-noite de sexta-feira, em uma encruzilhada. Depois de transformado, sai à procura de sangue, matando ferozmente tudo que se move. Para retornar a ser homem, ele volta à mesma encruzilhada antes do amanhecer.
De acordo com a simbologia dos contos, a sexta-feira representa a consciência da espiritualidade e, consequentemente, do desprendimento da vida material.
O homem se transformando em lobo justamente na sexta-feira pode representar a indignação da matéria e do corpo em ser desprezada pelo instinto espiritual, um alerta de que o corpo e a matéria possuem a força e o poder da transformação.
Em analogia inversa ao Sol físico, a culminação do Sol espiritual se dá à meia-noite. Um ponto de intensidade do qual se originam os valores opostos dos quais se estava valendo até então.
A encruzilhada é um ponto de repouso e um convite de que se vá mais além. Ela não é um ponto terminal. É um lugar de meditação, de espera e de escolha.
Demonstra que alguém está diante do desconhecido, denotando inquietação e a preocupação de que precisa tomar uma nova orientação decisiva para sua vida.
O lobisomem está numa encruzilhada: ele, o homem ou ela, a mulher, precisa decidir a que forças se entregar. À força instintiva ou à força da consciência. O lobisomem é o abrupto e impensado resultado desse dilema, dessa busca pela orientação combinada entre as duas grandes forças diante das agruras e delícias da existência.
O lobisomem aparece em noites de lua cheia, que representa a imaginação exaltada e humores extremados. É na lua cheia que as feras ficam à solta.
A gente se transforma em lobisomem quando sentimos medo diante do desconhecido e quando não sabemos qual o rumo devemos tomar. Percebemos que, afinal, todos os valores nos quais acreditamos e norteamos nossa existência já não têm mais sentido.
Nosso ânimo se exalta, nossos humores sofrem tamanha alteração que podemos virar um lobisomem e desejar sangue durante uma noite inteira.
Mas, o que pode matar o lobisomem, esse ser aterrador que nos vinga e consome? Fazer dele uma fogueira ou acertá-lo com uma bala de prata!
A bala de prata significa uma tomada de direção, uma tomada de atitude reta, direta, fria no sentido de não se deixar possuir pela emoção. Uma atitude de fidelidade a si mesmo, àquilo que sente de fato e no mais íntimo de si. Uma atitude firme e límpida. Esta é a solução para não sermos possuídos pelo instinto da fera.
Contudo, para sabermos exatamente o que sentimos e para sermos honestos conosco, teremos de saber qual é a dor da fera que mora em nós. Qual é o seu medo. Porque o ataque só acontece diante do medo. Nenhuma fera ataca sem se sentir acuada. Esse ataque doentio é próprio apenas do homem e da mulher insanos.
Daqueles que nunca conheceram sua própria fera, sua dor, sua voz, seu ardor, seu medo, seu desejo mais louco e sua doçura.
A bala de prata só serve para iniciar um processo de viajar junto à fera e dela aprender o mais íntimo de si mesmo. Respeitar, acolher e colocar o limite quando e como desejar.
O fogo é símbolo de transformação. O ferro que passa pelo fogo é o mais nobre e forte. O fogo advém das paixões.
Quando alguém aceita e se responsabiliza por sua própria fúria, seu ardor por algo ou por alguém, seu medo, sua angústia, sua dor, seu ciúme, sua inveja, seu luto, ou seja lá qual for sua paixão, quando esse alguém aceita, então acontece de se queimar em sua própria paixão.
Esse é o batismo de fogo do mundo antigo. Batizado assim está, e batizado, psicologicamente, significa reintegrado ao Self, às forças instintivas da psique.
Ganhou vida nova. Novos valores serão incorporados pelo ego. A vida ganhou um novo sentido, não mais baseado na categoria moral, mas sim na categoria de força e em seu sentido ético e estético.
Há também uma outra parte desse mito que nos diz que algumas pessoas se transformam totalmente em lobos e que elas mudam de forma à hora que querem. Elas não dependem de encruzilhadas, nem de lua cheia, nem de nada, porque possuem o domínio sobre si mesmas de modo a operar a transformação quando bem entendem e com consciência sobre tudo o que fazem.
Para os povos antigos, essas pessoas representavam os grandes feiticeiros.
Ser feiticeiro significa saber criar e administrar poções de encantamento e magia. Ser feiticeiro significa conhecer e dominar seus sentidos: ótimo e prático olfato, ouvido para escutar, olhos para ver o que é e não aquilo que desejaria que fosse, sensibilidade de pele para todo o toque concedido e recebido.
O feiticeiro é aquele que tem acesso e acolhimento à sua sensibilidade, aquele que laça e cata à unha sua fera todos os dias, sem, no entanto, se deixar enredar por ela, sem, no entanto, reprimi-la ou negar sua existência.
Esse é o feiticeiro capacitado a virar e desvirar lobisomem quando bem entender e com toda a consciência estética.
09.09.2020
Lunardon Vaz