Se você olhar direito, verá que as lendas brasileiras nos contam sobre o espírito do Brasil!
Esse nosso querido saltador travesso faz parte de nossas raízes, primeiramente das tribos indígenas do Sul do Brasil e, posteriormente, dos negros.
O mito tem procedência ameríndia, de fonte tupi-guarani e, antes de ser um negrinho de um pé só, primitivamente, ele era um pássaro encantado e, ainda hoje, em diversas versões, o Saci é uma ave.
Transformou-se, depois, no mito antropomórfico do negrinho de um pé só que caracteriza sua forma mais popular.
Nos contam as vovós que o Saci saltador possui uma perna só, usa um gorro vermelho e que sempre está pitando um cachimbo de barro. Além disso, ostenta uma das carinhas mais sapecas e vivazes de toda a mata.
Ele até tinha duas pernas, mas como os negros lutavam capoeira, passaram a dizer que o Saci, ao lutar com seu oponente, perdeu uma das pernas. Da mesma influência afro-brasileira veio também o seu cachimbo, chamado de pito. Já dos europeus, ele herdou o gorrinho vermelho que lhe é tão característico.
Ele é um trickster, um deusinho brincalhão, atravessando os campos e se divertindo em assustar os animais e as pessoas com seus grunhidos e assobios.
Curiosamente, é um profundo conhecedor de plantas e ervas medicinais. Controla e guarda os segredos do feitio e da aplicabilidade de todas as plantas e ervas da floresta. Ninguém deve se aproximar das ervas sem sua devida permissão, pois o Saci pode se aborrecer e fazer mil e uma travessuras.
Então, não esqueça: ao tomar uma erva, seja do pé ou do chá, lembre-se de pedir licença ao negrinho de uma perna só.
No sertão, os caboclos costumam deixar nos galhos das árvores um naco de fumo para o Saci ficar manso e não embaraçar a vida das gentes.
Ah… e tem mais, viu? Foi o Saci-Pererê que fez o feijão queimar, que jogou o dedal de costura num buraco e que escondeu objetos perdidos, como a meia que ficou sem par e os documentos que sumiram.
Sem contar que é o Saci quem leva para não sei onde as sombrinhas e os guarda-chuvas! Porque perder, você perde, mas achar você não acha, né?
E no sítio, então? Quando as gentes se acordam com o tropel dos cavalos, pode contar que, durante a noite, ele andou trançando as crinas dos pobres coitados, e por isso estão até agora apavorados.
As crianças assustadas correm para debaixo da mesa, e a mamãe dispara:
“O Saci e o redemoinho são transtornos iguais!”
Pudera! Ele mora no redemoinho!
Eles nascem em brotos de bambu, lá onde cantam os ventos, e ali vivem por sete anos até aprenderem a dominar o vento e fazer redemoinhos. Quando ficam sabidos, vivem por mais setenta e sete anos a fim de atentar a vida das pessoas e dos bichos!
Após toda essa diversão, morrem e se transformam em cogumelos venenosos para, mais uma vez, passarem a perna nos seres viventes que se atreverem a mexer com ele.
É uma força indomável, feito o redemoinho. É possuidor de um movimento helicoidal, numa ascensão evolucionista dirigida por força instintiva, como nos explicam Chevalier e Gheerbrant em Dicionário de Símbolos. Eles também elucidem que o perneta representa um grande poder que rege o intemporal, o desconhecido e o proibido.
O cachimbo representa a força e a potência do Homem Primordial, invulnerável e imortal em sua harmonia com as forças do Universo que ele representa em seu microcosmo.
O pito é um emblema a ser utilizado quando surge um assunto sério ou de importância vital.
O nosso Saci-Pererê nos revela grandes poderes que habitam a nossa alma brasileira, advindos das nossas raízes indígenas e negras. E nem para por aí!
E o gorro vermelho, que é um acréscimo da cultura europeia?
Vestir um gorro significa que a pessoa se abstém de seus próprios pensamentos para se apropriar ou se unir ao pensamento da coletividade, de modo a utilizar sua sensibilidade a fim de verificar os ideais e princípios do coletivo.
O gorro vermelho do nosso Saci representa, pela sua cor, o princípio da vida, tal como o fogo e o sangue. Em sua aparição, sugere que fiquemos alertas e que tenhamos reverência frente ao perigo da força descomunal da Natureza.
O que isso tudo significa para nós?
Significa que toda essa força natural, essa capacidade de cura, essa capacidade de tornar a vida leve em risos e brincadeiras e, sobretudo, ser muito sério no trato com a própria Terra e bastante responsável em relação às pessoas através da sabedoria curativa e dos cuidados necessários para ficar bem são atributos que fazem parte de nossa psique coletiva.
O povo brasileiro possui em seu psiquismo o Saci-Pererê, essa grande força e pujança que pode ser utilizada tanto para a destruição quanto para a construção, porque a natureza em si mesma é amoral. Cada um de nós dá o salto do Saci conforme nossa perna alcança.
Pois que seja para o riso amigável e para a cura!
21.10.2020