Estou aqui traçando um breve paralelo entre essa nossa lenda e o comportamento instintivo do humano que segue somente sua vontade sem se importar com seus deveres éticos ou de responsabilidade, o que traz desconforto para seus convivas e consequentemente para si mesmo quando na fase adulta. Posto que na fase da primeira infância esse comportamento faz parte da natureza e é o esperado que aconteça na criança que começa a explorar o mundo. No adulto, entretanto, pode se tornar patológico quando se mostra compulsivo e constante.
As primeiras citações sobre o sensual Boto Amazônico surgiram no século XIX. Segundo o folclorista Câmara Cascudo, ele seria a versão masculina da mãe-d’água ou Yara, que foi nosso tema anterior das lendas brasileiras aqui na rádio UEL. É provável que a Lenda do Boto Cor-de-Rosa tenha sido inventada não pelos nossos índios, mas pelos colonizadores portugueses.
Esse ser fantástico que habita os rios da Amazônia é conhecido como um grande sedutor. Dizem que é nas primeiras horas da noite que o bicho boto deixa para trás sua pele cor-de-rosa para se transformar em um rapaz alto, forte e bonito, vestido de branco e muito atraente.
Ele é um grande dançarino e adora ir a bailes, nos quais aparece sem ser convidado e tendo o cuidado de sempre usar um chapéu para não mostrar o orifício no alto da cabeça por onde respira. Sua presença é marcante e chama muito a atenção. Seduz a todos, conversa bem demonstrando afabilidade. Marca os encontros junto aos igarapés afluentes do Amazonas e, depois de namorar, antes do nascer do sol, volta para as águas e para a sua existência de boto, deixando grávida a moça de seu encontro.
Diz a lenda que aparece nas casas onde vivem as mulheres jovens e bonitas segundo seu padrão de beleza. Se aproveita da ausência dos homens para atrair as moças, e nenhuma delas consegue resistir ao seu encanto. Na Amazônia, sempre que há um caso de paternidade desconhecida, surge a expressão já bem conhecida: “Moça, foi o Boto Cor-de-Rosa!”
Conta-se também que o Boto costuma assaltar as canoas que carregam mulheres grávidas e, em algumas versões, o Boto se transforma numa linda mulher atraindo os jovens rapazes para um mergulho no rio, do qual eles nunca mais voltarão.
É evidente que gerar órfãos é sua especialidade.
Gera um sentimento na outra pessoa e sorrateiramente se esgueira para suas águas; gera um desejo na outra pessoa e sorrateiramente se esgueira para suas águas; gera uma expectativa na outra pessoa e sorrateiramente se esgueira para suas águas; gera uma criança numa outra pessoa e sorrateiramente, antes do sol nascer, antes da luz da razão denunciar o engodo, sorrateiramente o Boto Cor-de-Rosa se esgueira para suas águas oceânicas, para suas justificativas falaciosas, para suas intenções narcísicas e autodefensivas, para seu complexo de superioridade, para sua autopiedade, para sua indiferença qualquer, para um isolamento qualquer que o isente de sua responsabilidade pelo vínculo que ele mesmo buscou criar.
Nesse momento, a pessoa de sua convivência acaba compreendendo que está amando e conduzindo sozinha a relação, sem a participação efetiva do Boto, nem mesmo em reconhecimento ou gratidão. Sobretudo, percebe que ele não se responsabiliza pelos seus atos, delegando toda a responsabilidade do projeto de vida que anteriormente seria a meta de ambos. Ou ainda, que ele não se compromete com o trabalho que lhe foi solicitado e nem com a carreira que diz ter escolhido.
Faz aquilo que lhe dá vontade, segue seus impulsos e não atende aos deveres e nem se compromete com afinco.
Todos nós temos um complexo de inferioridade, bem como um complexo de superioridade. Sempre haverá algo em nós que julgaremos melhor e algo que julgaremos pior do que aquilo que vemos ali na outra pessoa. O importante é que, na vida adulta, aprendemos a fazer uma composição entre os dois complexos para não causar dano àqueles que nos amam e nem a nós mesmos.
Ao se abrigar em seu mundo oceânico, a pessoa boto ouve apenas o som de seu próprio mundo e, ali mergulhado, nada e atua conforme a sua própria maré.
Muitos concordam que esse é apenas um modo de vida e que é uma simples escolha.
Eu ouso lhe perguntar: é essa escolha que você quer para sua vida?
E o que pensam, então, os órfãos do Boto?
Eu gostaria de receber sua resposta!
29.07.20
Lunardon Vaz
Fontes utilizadas:
Freud – O Mal-Estar na Civilização – Obras Completas
C.G. Jung – Estudos Psiquiátricos – Obras Completas
Luis da Câmara Cascudo – Dicionário do Folclore Brasileiro