Se você olhar direito, as lendas brasileiras resgatam a alma do Brasil, aquilo que somos no mais profundo de nosso âmago e no mais raso de nossa pele!
Era uma vez e não era uma vez havia, na cidade de Jericoacoara, lá no Ceará, uma esplendorosa cidade construída em castelos brilhantes de pedras preciosas, do ouro e da prata dessa terra que tudo nos dá.
Ali morava uma generosa princesa. A mais linda, a mais rica em benevolência e coberta de riquezas do amor, da empatia, da simpatia. Seu esplendor era tamanho que iluminava todo o Brasil e quiçá o mundo.
A inveja de seu poder não tardou a se fazer em destruição. Logo surgiu um feiticeiro que a desterrou de tudo que a fazia maravilhosa. A princesa encantada se tornou um monstro. Seu corpo foi coberto por escamas de ouro feito serpente; somente seus pés e cabeça escaparam da terrível magia do bruxo invejoso.
Da mesma maneira, a cidade também se encantou e ambas se tornaram inacessíveis a todos porque o feminino e a terra são uma só entidade.
Conta a lenda que onde havia a cidade hoje existe um farol à beira-mar. (Que incrível! A Terra é tão maravilhosa que ela, mesmo ferida, ainda nos indica o caminho e nos ilumina com o seu farol!).
Quando ocorre a maré baixa, dá para ver uma caverna. Ao fundo dessa caverna há um portal de ferro; atrás do portal está a cidade encantada onde mora a princesa. Mas ninguém se atreve a chegar perto.
No entanto, os cearenses sabem como quebrar o encanto. Quando um corajoso humano derramar o seu sangue junto ao portal de ferro, este imediatamente se abrirá e o felizardo deverá se arrastar por uma passagem estreita até atingir a cidadela onde mora a princesa encantada.
Uma vez já lá dentro, encontrar-se-á com a princesa e, sem medo, fará o sinal da cruz com seu sangue bem no torso do corpo dela. E pronto! Eis que a cidade e a princesa desencantam. O mundo volta a resplandecer, e o casal se une em casamento; o par de opostos equilibra de novo o mundo que esteve pobre e caótico por ganância e inveja.
Mas não julguemos de modo apressado. Isso não significa que a mulher aguarda pacientemente que um homem venha lhe resgatar de seu sofrimento e consequentemente salvar o seu mundo.
Não se trata de gênero. Trata-se de energia psíquica. Significa que o feminino foi contaminado por um mundo masculino impregnado pela avareza e ganância viscerais, tornando-se ela mesma numa criatura medonha.
Essa nossa lenda nos traz um alento. Nos garante que, se o humano enfim se redimir com seu próprio sacrifício, se imolando perante o espírito da terra, o mundo de riquezas estará salvo.
Note que ele deverá derramar seu sangue diante do portal, se arrepender, se sacrificar. Depois disso, fará uma travessia a partir da gruta, que representa a genitália feminina, atravessando um canal estreito tal e qual ocorre no nascimento, para renascer na nova terra, numa nova concepção de ocupação de existência.
A presença da cruz é atestada desde a mais alta Antiguidade. Dentre vários de seus significados, ela representa a Terra e é a base de todos os símbolos de orientação nos diversos níveis de existência do humano. Através de sua inscrição junto à princesa, o feitiço foi completamente desfeito.
Vale acrescentar aqui que, no Portal SãoFrancisco.com.br, encontra-se essa citação:
“A princesa ainda continua na gruta, metade mulher, metade serpente, como Melusina, e também como a maioria das mulheres.”
No entanto, a questão não é de gênero. A questão é ecológica, é social, é psicológica e é mundial!
É muito fácil apontar esse ou aquele culpado, essa ou aquela culpada, e assim deixar o problema se estender infinitamente sem nenhuma solução.
Solução que requer nosso sangue, nossa luta, nossos esforços, foco de atenção constante e perseverança e, mais que tudo, colaboração e cooperação.
Melusine ou Mélisande é o nome de uma personagem das lendas da França medieval, nelas descrita como tendo a cabeça e o torso de uma bela jovem, asas de dragão e a metade inferior do corpo de uma serpente gigante.
Na heráldica francesa e britânica, porém, Melusina é frequentemente representada como uma sereia de cauda dupla que, para os alquimistas, representa a Anima Mundi, o espírito da Terra.
A consciência ecológica nos garante que o espírito da Terra está de fato em grande sofrimento devido ao abuso ganancioso do humano. Nunca uma espécie habitante da Terra causou tanta devastação em tão pouco tempo como o fez e ainda faz o homo sapiens.
Os estudiosos do tema, bem como os cientistas, vêm denunciando que os recursos naturais da Terra estão em extinção e, com eles, a nossa espécie.
Mais do que nunca, precisamos salvar a Princesa de Jericoacoara.
Essa lenda brasileira está bem aqui em nosso imaginário, de modo que não somos mais inocentes, somos todos culpados!
A lenda, por existir, já demonstra que sabemos o que acontece; só não estamos fazendo a nossa parte para parar o que acontece. Estamos todos fazendo de conta que desconhecemos o feitiço enquanto lamentamos a pobreza e a miséria e aprovamos, pela omissão, as atitudes de ganância e poder desmedidos.
A princesa nos espera, a luz do farol nos guia. Afinal, o que estamos esperando?
Lunardon Vaz
08.10.2020