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CHAPÉUZINHO VERMELHO E O LOBO MAU – a conquista da feminilidade

As personagens sobre as quais trata esse texto são
tidas como conteúdos psíquicos projetados na realidade objetiva. No
entanto, como inexiste o mundo de dentro e o mundo de fora ou ainda,
um não existe sem o outro, essas personagens estarão sendo
analisadas tanto como realidade objetiva como quanto realidade
subjetiva.

O
tratamento psíquico requer que sejam tratadas como realidade
subjetiva para se alcançar o sucesso da transformação dos
conteúdos que roubam do ego sua autonomia antes de serem por ele
conhecidos. O conhecimento do ego sobre tais conteúdos assegura a
transformação. Os contos de fada, os mitos, as fantasias, os sonhos
e devaneios são materiais de projeção d
os
conteúdos
psíquicos,
daí a importância em estudá-los e de até submetê-los ao bisturi
da mente analítica.

Era
uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho, que tinha esse
apelido porque desde pequenina gostava de usar chapéus e capas desta
cor. Chapeuzinho e sua mamãe moravam nas proximidades da floresta.

Um
dia, sua mãe pediu:


Querida, sua avó está doente, por isso preparei aqueles doces,
biscoitos, pãezinhos e frutas que estão na cestinha. Você poderia
levar a casa dela?


Claro mamãe. A casa da vovó é bem pertinho!


Mas, tome muito cuidado. Não converse com estranhos, não diga para
onde vai, nem pare para nada. Vá pela estrada do rio, pois ouvi
dizer que tem um lobo muito mau na estrada da floresta, devorando
quem passa por lá.


Está bem, mamãe, vou pela estrada do rio, e faço tudo direitinho!

O
conto de Chapeuzinho se inicia com três personagens e todas elas
femininas. De onde se depreende que tal universo está polarizado e
consequentemente, radical. Não há nenhuma menção sobre se quer um
masculino. Ninguém fala sobre pai, avô, tio ou amigo. Ocorre uma
omissão
do masculino
e por isso
vive inconsciente na psique.

Devido
a tudo estar
envolto na
vivência apenas do feminino,
a
força psíquica de energia masculina se encontra inconsciente

De
modo que o comportamento do sujeito ou de uma dada sociedade que
também possui tal característica psicológica se manifesta em
conceitos cristalizados, ideias engessadas

e sobretudo a defesa narcísica que busca apenas a distração e a
transcendência abdicando da realidade objetiva em troca da
realidade imagética.

Para
designar a atração que guia o desejo no sentido da transcendência,
as últimas palavras de Goethe em seu segundo “Fausto”
surgem em um coro místico que proclama: O eterno feminino nos atrai
para o alto”.

Indicando
a
ssim que
o feminino representa o desejo sublimado.

Com
a energia masculina soterrada na psique, ocorre que ela reaparecerá
trajada de monstruosidade porque todo conteúdo inconsciente almeja
ir para a consciência. O lobo mau nos espreita.

Podemos
então, nos adiantar em nosso conto ao questionar qual seria o desejo
sublimado na história de Chapeuzinho Vermelho, cujo apelido advém
do constante uso de chapéu e capa vermelhos desde pequenina.

E
em sendo assim, é justo supor que a grande influência para seu
comportamento vem da família. De modo que devemos buscar o desejo
sublimado na mãe e na avó, únicos personagens presentes.
Devemos
examinar a herança psíquica para melhor compreensão deste
cenário.

No
plano social estamos vivendo tanto a misoginia quanto a misandria.
Esta última tem sido completamente negligenciada e até ignorada,
nada se diz sobre a raiva em relação aos homens, mas os padrões e
consequências deste fato são bem visíveis e lamentáveis. Como
isto acontece na sociedade, também ocorre na psique, de maneira que
as forças masculinas da psique estão sendo, no mínimo,
negligenciadas.

As
forças da psique não possuem em si mesma qualquer tipo de distinção
posto que sejam elas instintuais. A razão, hoje tomada também como
instintiva, nomeia e organiza o mundo fazendo o mesmo com as forças
psíquicas.

Por
outro ângulo, o aparelho psíquico possui uma retroalimentação de
energia o que equivale a dizer que conteúdos inconscientes modificam
conteúdos conscientes e vice-versa.

Tudo
que está na sociedade recebe projeções do inconsciente e são
estimulados por ele, bem como tudo o que está na sociedade
influencia os conteúdos inconscientes.

É
devido a isso que se faz menção entre força masculina e feminina
da psique. O gênero masculino recebe atributos e características
ditadas pelo social. O mesmo acontece com o gênero feminino. Ao
introjetar estes papéis e conceitos, a mente passa a fazer distinção
entre suas forças na tentativa de se autoexplicar. De modo que, as
forças da psique ficam assim organizadas pela própria razão da
psique.

Os
conceitos e pensamentos determinam o comportamento, de modo que a
análise sofre e discorre sobre as duas consequências, tanto aquela
vivida e adquirida socialmente quanto aquela que por motivos vários
se encontra inconsciente, em outras palavras, a análise se faz tanto
em direção ao objeto quanto em direção ao sujeito.

O
universo de Chapeuzinho que é feminino está coberto pelo vermelho.

Comecemos
pelo chapéu. Nos rituais sagrados, o mestre participa dos trabalhos
sempre com a cabeça coberta para indicar suas prerrogativas e sua
superioridade. Analisando vários comportamentos de várias culturas,
o chapéu parece desempenhar a mesma função da coroa, signo de
poder e de soberania.

Ele
também representa a cabeça e os pensamentos que se fazem por
identificação com a consciência estabelecida. Em vários contos, o
herói tem os pensamentos e empreende os projetos da pessoa cujo
chapéu está usando.

Na
interpretação de Carl Gustav Jung, mudar de chapéu significa mudar
de ideias e ter outra visão de mundo e de homem.

A
capa ou manto tem sido utilizado em diversos tipos de sociedade para
indicar que aquele que a usa exerce um poder sobrenatural fazendo
parte de atributos dos deuses. Por outro lado, na religião celta a
capa ou manto toma outro significado por que aquele que a veste toma
o aspecto, a forma e o rosto que quer pelo tempo em que a leva sobre
si. De modo que o manto, apesar de continuar a ser sobrenatural, é
também o símbolo da metamorfose e indica que uma pessoa é capaz de
assumir várias personalidades.

Antes
de seguir adiante, lembremos que na psique, o ego, ou aquilo que
pensamos ser nossa única personalidade é apenas um dos inúmeros
conteúdos que formam a psique e que esta é constantemente mutável
e dinâmica, assim como o universo ela está em constante
transformação. Para Jung, a psique é uma fonte transformativa, o
ego é apenas um de seus núcleos e há diversas personagens que
foram denominadas por Jung de personalidades parciais. Elas estão aí
e se comunicam com o ego no caso das neuroses e no caso de psicose
elas tomam conta do ego, criando a dissociação psíquica.

Em
última instancia o manto ou capa foi e é utilizado, como nos casos
dos monges e das freiras, para indicar a retirada do mundo objetivo e
a intenção de se separar das tentações e de renunciar aos
instintos materiais.

Para
terminar a investigação sobre o desejo sublimado que habita e
origina esse conto, vejamos sobre a cor vermelha.

O
vermelho, desde sempre, ou melhor, em todas as civilizações e
sociedades, diante de seu poder, força e brilho foram associados ao
princípio da vida.

Quando
contido é a condição da vida e quando espalhado é condição de
morte. A mulher ao conter o seu sangue dá a luz e ao espalhá-lo na
menstruação significa a morte do óvulo, aquilo que poderia ter
sido e não foi.

É
devido a isso que em muitas sociedades as mulheres foram obrigadas a
um retiro purificador antes de regressar à sociedade da qual foram,
temporariamente, excluídas. Inúmeros estudos demonstram que ainda
hoje, um dos possíveis componentes que atingem a mulher em forma de
depressão por volta de seu período menstrual é a perda, ou, a
morte do óvulo. Na depressão pós-parto, a mulher sofre a perda do
feto e por isso lhe é difícil aceitar o novo, o bebê.

Por
último, o vermelho é associado ao Eros vivo e triunfante. Na África
negra e nas tribos indígenas da América, a pintura vermelha tem o
atributo de estimular a força e despertar o desejo.


Em várias tradições da
Rússia até a China e ao Japão, a cor vermelha está associada a
todas as festividades, especialmente a casamentos e nascimentos. É
comum se dizer de uma criança que ela é vermelha para significar
que é bonita.

É
usado para estimular as forças guerreiras, o arrebatamento e o ardor
da juventude.

Enfim,
o vermelho de Chapeuzinho e de sua mãe e avó juntamente ao símbolo
do chapéu e manto vêm significar que o desejo sublimado é o desejo
libidinal.

A
libido é a força vital que atravessa os corpos. Ao interrompê-la,
busca-se não mais sofrer dores de perdas, decepções e morte.
Porém, ao não sofrer mais a morte também não se sofre a vida. E
assim é que, usando o dito popular, o molho fica mais caro que o
peixe, pois não sofrer significa zumbizar pela vida, melhor seria se
já estivesse morto. Por que dessa maneira, não há mais história,
não há mais metamorfoses, não há mais vínculos, só resta o
próprio espelho e umbigo. Daí a necessidade de criar um mundo
mágico paralelo onde, na maioria das vezes, depois da morte, irá
viver em esplendor.

O
medo e a não aceitação da morte determina que não haja vida.

No
amor e na vida há de se quebrar a cara até se tornar descarado. O
que quero dizer com isso é que o melhor para a saúde mental é que
se lide com a traição, decepção e morte até que se torne sem
pudor para viver a vida que trás em seu bojo a finitude de tudo e de
todos. C’est la vie.

Muitos
querem determinar que a libido é o sexo. Esse conceito é deturpado
e desqualifica a libido que não apenas está no ato sexual em si,
como também está em tudo o mais que trás prazer, seja ler,
escrever, assistir ou participar de um jogo, orar ou rezar, cuidar de
um animalzinho, colher uma flor, dar bom dia aos pássaros. Tudo que
dá prazer faz parte do instinto e, consequentemente, da força
libidinal, da força da vida.

Não
há como ser feliz sem a cor vermelha. Na alquimia, quando se está
prestes a chegar a Grande Obra, surge o albedo que é o branco.
Poderia se pensar que aí estaria a grande chegada e descoberta final
para a Pedra Filosofal.

Diz
Jung: ¨… Mas no branco não se vive, é preciso o rubedo para que
haja a vida.

E
um dia a mamãe pediu para Chapeuzinho Vermelho ir à casa da vovó:


Querida, sua avó está doente, por isso preparei aqueles doces,
biscoitos, pãezinhos e frutas que estão na cestinha. Você poderia
levar a casa dela?


Mas, tome muito cuidado. Não converse com estranhos, não diga para
onde vai, nem pare para nada. Vá pela estrada do rio, pois ouvi
dizer que tem um lobo muito mau na estrada da floresta, devorando
quem passa por lá.


Está bem, mamãe, vou pela estrada do rio, e faço tudo direitinho!

É
um fator real e corriqueiro verificar que, quando a mãe mantém a
filha sob o jugo do mundo feminino em detrimento do masculino, seja
devido à misandria ou não, na relação entre mãe e filha ocorre
uma situação doentia normalmente despercebida ou ignorada pelas
pessoas envolvidas. É muito comum verificar que a mãe faz de sua
filha uma espécie de extensão de si mesma, situação na qual a,
criança é vista e tida como objeto e não como sujeito.

Desse
modo, a mãe, muitas vezes trata a garota como se essa fosse uma
mulher feita, seja dando-lhe responsabilidades e tratamento de
adulto, seja contando-lhe segredos íntimos ou deixando-a participar
de conversas íntimas ou vulgares, seja vestindo-a como mulher, seja
ignorando o perigo pelo qual a filha possa estar passando, desde que
lhe convenha.

Até
pareceria um cuidado exagerado se não fosse o fato de que há por
detrás seu jogo manipulatório e real intenção de registrar sua
posse sobre seu objeto de poder, sua filha, talvez reproduzindo a
mesma situação onde ela mesma, possivelmente tenha sido, ou ainda
é, a refém emocional de sua mãe.

Por
outro lado, a filha se mantém psicologicamente cativa por que num
universo assim, o
masculino
está enfraquecido.

O
sujeito forte não necessita parasitar outro ser, muito menos fazer
dele seu objeto de posse. Agindo assim denuncia sua doença. Aquele
que está doente está fraco.

No
conto, Chapeuzinho assegura à mãe que irá seguir seus conselhos e
de fato, a criança dentro desse universo, torna-se bastante
obediente. Obedece a tudo que a mãe lhe propõe, uma razão para tal
obediência é por que assim pensa em ganhar o afeto materno tão
querido, mas que só lhe chega de modo deturpado, um dos fatores que
pressupõem a Síndrome da Acomodação do Abuso Infantil.

De
qualquer modo, a homeostase psíquica, processo natural e instintivo
comprovado principalmente nos estudos junto aos portadores de
psicose, se encarregará de colocar à sua frente o dito Lobo Mau. A
personificação negativa do masculino faltante. Haverá também, nos
sonhos e devaneios a personificação do masculino positivo, o
Príncipe Encantado.

Em
ambos, nota-se uma exacerbação de seus defeitos em um e de suas
qualidades em outro.

O
perigo maior em tudo isso é que a garota poderá projetar suas
fantasias em pessoas de seu convívio ou num posterior namorado, de
modo a se tornar refém de um companheiro que a domina e subjuga
experimentando sua impotência para sair de tal armadilha.

Se
não acontecer desse modo, poderá acontecer de modo
oposto,
subjugando o
companheiro
devido a
sua própria misandria. Em ambos os casos, a mulher, que ora é, não
experimenta o êxtase maior em ser mulher, a troca afetiva e o
encontro com o outro.

Chapeuzinho
veste vermelho e se mostra cheia de vida, cheia de prazer, se empenha
em seduzir pela roupa que veste, pelo jeito que aprendeu nas novelas
e nas músicas de cunho sexual ou nos concursos de pequenas misses ou
mesmo no convívio desse seu mundo tão feminino, no qual a sedução
e a promessa de satisfazer sexualmente é uma mensagem constante, com
o intuito de esconder a real impotência de se manter em contato
afetivo com o outro.

Voltando
ao conto:

E
assim foi. Ou quase, pois a menina foi juntando flores no cesto para
a vovó, e se distraiu com as borboletas, saindo do caminho do rio,
sem perceber.

Cantando
e juntando flores, Chapeuzinho Vermelho nem reparou como o lobo
estava perto…

Ela
nunca tinha visto um lobo antes, menos ainda um lobo mau. Levou um
susto quando ouviu:


Aonde vai linda menina?


Vou à casa da vovó, que mora na primeira casa bem depois da curva
do rio. E você, quem é?

O
lobo respondeu:


Sou um anjo da floresta, e estou aqui para proteger criancinhas como
você.


Ah! Que bom! Minha mãe disse para não conversar com estranhos, e
também disse que tem um lobo mau andando por aqui.


Que nada – respondeu o lobo – pode seguir tranquila, que vou à
frente retirando todo perigo que houver no caminho. Sempre ajuda
conversar com o anjo da floresta.


Muito obrigada, seu anjo. Assim, mamãe nem precisa saber que errei o
caminho, sem querer.

E
o lobo respondeu:


Este será nosso segredo para sempre…

E
saiu correndo na frente, rindo e pensando:

(Aquela
idiota não sabe de nada: vou jantar a vovozinha dela e ter a netinha
de sobremesa… Hum! Que delícia!)

A
garota veste a cor vermelha e desempenha o papel que lhe foi dado, no
entanto, ainda permanece ingênua, apesar de não mais ser inocente.
A ingenuidade é um grande mal. Trata-se de uma defesa do ego contra
a percepção da realidade e a responsabilidade de assumir as
consequências e viver o conflito. No entanto, a pessoa inocente,
simplesmente não é culpada.

E
todo Lobo Mau percebe, se alegra e se diverte com isso. Seu sucesso
na caça lhe é garantido. Parece até um gatinho brincando com a
presa antes de abocanhá-la.

O
Lobo Mau diz ser um anjo que a protegerá.

Numa
análise em direção ao objeto pode-se verificar que nas relações
afetivas, muitas mulheres desejam que seus homens a protejam. Nada
mais natural posto que esteja gravado no substrato da psique que é
papel do macho
exercer
a proteção
. No
entanto, manter esse desejo é uma fonte de decepção.
A
Psicologia Analítica entende que a mulher ao reconhecer seu poder
da energia psiquica masculina
sentir-se-á
nutrida, segura e protegida

Em
se tratando da análise em direção ao sujeito, o lobo e tudo que
ele representa são atributos da própria pessoa que estariam sendo
projetados e não reconhecidos como seus, deixando ao cargo do outro
o desempenho desse p
apel.

Encontrar
o Lobo Mau dentro de si é o caminho para garantir um pouco mais de
autonomia para o sujeito.

Lobo
e anjo, ambos se confundem nessa história. Será que um pode ser a
face do outro? Vejamos.

Na
mitologia, os anjos são seres intermediários entre Deus e o mundo.
Formam o exército de Deus, sua corte e sua morada. Têm como função
velar pelo mundo e transmitir suas ordens. Na fé cristã, os justos
têm um anjo da guarda que está sempre a lhe apontar o caminho do
bem e livrá-lo da armadilha cabendo ao sujeito tomar a atitude de
seguir ou não o seu conselho.

Tomar
atitudes; se confrontar com o problema; seguir adiante; dizer não
para algo onde todos querem que diga sim; denunciar; lutar pelo seu
desejo; abrir caminho e desbravar a mata da ignorância é tarefa
para o sujeito fazer, por que o anjo apenas transmite a ordem divina,
ele não possui o corpo para interagir no mundo. E só para lembrar,
essas tarefas foram, por séculos, atributo do gênero masculino,
na
verdade são atributos da energia psíquica masculina que nos
atravessa.

E
todas elas requerem a percepção, força e o ardor no combate que
tem sua representação no lobo.

Nesse
sentido, anjo e lobo, são complementares. E há ainda um ponto em
comum, ambos possuem a função de psicopompos, ou seja, de
transmitir mensagens do alto para o baixo, de Deus para o crente, do
inconsciente para o consciente. Se o anjo tem por função transmitir
mensagens do reino divino, o lobo tem a função de transmitir
mensagens da floresta e do reino animal, dos instintos. Num canto
fúnebre romeno pode-se atestar essa sua função:

Aparecerá
ainda o lobo diante de ti

Toma-o
como irmão

Porque
o lobo conhece

A
ordem das florestas

Ele
te conduzirá pela estrada plana

Até
um filho de Rei

Até
o paraíso.

(Trésor
de La Poésie Universalle, por R. Caillos & J.C. Lambert, Paris,
1958.)

O
anjo é símbolo do desejo ascensional e do instinto espiritual,
enquanto que o lobo é símbolo dos instintos, especificamente nessa
história, ele é símbolo do desejo sexual.
Em
última instância, s
ão
faces da mesma moeda
asas
do mesmo pássaro.

Quando
um instinto é negado pelo ego e renegado ao inconsciente, não
significa que não mais existe. Existe e faz uma enorme pressão ao
ego que tende a ser solapado por ele. Quando uma sociedade nega o
desejo sexual, ele se estabelece de modo exacerbado. Do mesmo modo,
quando a sociedade nega o instinto da raiva, este se estabelece no
social com intensidade imprópria. Se a sociedade admitisse raiva,
sexualidade e outros assuntos, eles seriam de menor intensidade e
passíveis de
regulagem.

Quando
os instintos são devidamente reconhecidos, em contato com a
consciência ele a modifica e é por ela modificado. O veneno pode se
tornar o elixir da vida.

O
lobo desse conto é um Lobo Mau, o que significa que ele é um lobo
infernal e que sua força não está disponível ao ego, muito pelo
contrário, se encontra no fundo da psique, não está em cima feito
o sol (consciência), está embaixo, no inferno (inconsciência).

O
Lobo Mau é o primeiro masculino a surgir no conto. Em primeiro
lugar, ele representa as forças que estão inconscientes sobre o
masculino. Ele é um predador da psique, assim como no
coletivo,
ele é o predador social.

Quando
algo acontece errado, a criança tende a manter sigilo, um dos
motivos é o medo de perder o amor dos pais.

Geralmente
o Lobo Mau pede segredo, isso lhe garante a presa e ainda mantém uma
cumplicidade com ela.

Quando
se trata do predador da psique, as pessoas também não falam a
respeito, por que o predador da psique lhe envia mensagens sempre de
depreciação e vergonha.

Esse
Lobo Mau negativo tem sua origem na misandria, por isso que nesse
conto a avó será sua primeira vítima. Essa história de que “homem
não presta”; “homem é tudo igual”; “homem não
sabe se virar”; etc. e tal vêm desde o tempo da vovó.


os predadores falam assim: “ela levou o que mereceu”; “não
fiz nada que ela não desejasse”; “ela queria ser abusada”;
“você não vale nada por isso tem que ficar comigo e se deixar
ser usada conforme eu desejar”; “mulher é para usar e
jogar fora” e outros fatos e piadas que possuem claramente o
viés da misoginia, que por sua vez, remonta alguns séculos contra o
feminino.

A
avó é duas vezes mãe, sugerindo que o padrão de comportamento
visto aqui faz parte da herança psíquica.

Chegando
à casa da vovó, Chapeuzinho bateu na porta:


Vovó, sou eu, Chapeuzinho Vermelho!


Pode entrar minha netinha. Puxe o trinco, que a porta abre.

A
menina pensou que a avó estivesse muito doente mesmo, para nem se
levantar e abrir a porta. E falando com aquela voz tão estranha…

Chegou
até a cama e viu que a vovó estava mesmo muito doente. Se não
fosse a toquinha da vovó, os óculos da vovó, a colcha e a cama da
vovó, ela pensaria que nem era a avó dela.


Eu trouxe estas flores e os docinhos que a mamãe preparou. Quero que
fique boa logo, vovó, e volte a ter sua voz de sempre.


Obrigada, minha netinha (disse o lobo, disfarçando a voz de trovão).

Chapeuzinho
não se conteve de curiosidade, e perguntou:


Vovó, a senhora está tão diferente: por que esses olhos tão
grandes?


É pra te olhar melhor, minha netinha.


Mas, vovó, por que esse nariz tão grande?


É pra te cheirar melhor, minha netinha.


Mas, vovó, por que essas mãos tão grandes?


É para te acariciar melhor, minha netinha.

A
essa altura, o lobo já estava achando a brincadeira sem graça,
querendo comer logo sua sobremesa. Aquela menina não parava de
perguntar.

Um
dos grandes aliados para que haja fluidez de vida é a curiosidade.
Quando se está numa situação perigosa, é melhor fazer as
perguntas certas. Elas abrirão caminho para o enfrentamento ao
conflito e a consequente resolução do problema.


Mas, vovó, por que essa boca tão grande?


Quer mesmo saber? É pra te comer!


Uai! Socorro! É o lobo!

A
menina saiu correndo e gritando, com o lobo correndo bem atrás dela,
pertinho, quase conseguindo pegar.

Segundo
várias culturas, o olho é símbolo do conhecimento e da percepção.
Quando Chapeuzinho se interessa por fazer a pergunta sobre os olhos,
ela está se utilizando de seu instinto para perceber e assim deixar
de ignorar o perigo como tem sido de hábito como consequência de
uma atitude essencialmente feminina.

O
nariz, assim como os olhos, é símbolo de percepção. No olho a
sabedoria é mais racional, em relação ao nariz o conhecimento é
bem mais intuitivo do que racional.

As
mãos são equivalentes aos olhos. A mão vê através do tato, de
modo que também é símbolo de percepção.

As
orelhas são símbolos de inteligência cósmica em diversas culturas
orientais, onde grandes orelhas é sinal de sabedoria e imortalidade.
A função auditiva, segundo os hindus, possui a percepção dos sons
inaudíveis da vibração primordial. Para os bambaras, a orelha
devido a sua conformação é um duplo símbolo sexual, onde o
pavilhão auditivo representa o pênis e o conduto auditivo, a
vagina. Segundo os dogons, a palavra do homem é tão indispensável
à fecundação da mulher quanto como o seu líquido seminal. A
palavra máscula desce pela orelha, assim como o esperma entra na
vagina de modo a fecundar.

Segundo
Carl Gustav Jung, o conhecimento e o seu pleno feminino, chegam à
mulher através da razão, enquanto que para o homem, o conhecimento
e seu masculino pleno em desenvolvimento, chega-lhe através do amor.

Atualmente
a boca representa um grau elevado de consciência com a capacidade
organizadora própria da razão. Nos tempos passados e em várias
sociedades a boca representa a passagem tanto para a luz quanto para
a sombra. Assim é que a goela é tida como símbolo ctoniano, a boca
de sombra que seria a entrada para o mundo subterrâneo e que devora
toda a tarde o sol e o dia para vomitá-los na aurora sobre a terra.
É símbolo de passagem entre vida e morte, daí seu caráter
iniciático. Diz-se do iniciado que se encontra em meditação
transformativa que ele foi devorado por um monstro e que, em breve,
será vomitado em forma de luz, ou seja, o seu retiro lhe trará a
luz da consciência e da percepção.

Os
dentes são instrumentos de tomada de posse. Ele esmaga para
assimilar, ou melhor, para fornecer o alimento ao desejo. Simboliza a
força da mastigação onde se vê a agressividade devido aos
apetites materiais. Na mastigação devoradora encontra-se o símbolo
da divisão e multiplicação de uma intelecção unificadora a fim
de elevá-la de
uma
forma
engessada e
rígida para uma abrangência e fluidez que contemple todo o corpo,
seja ele individual ou coletivo.

Encontra-se
aqui o propósito da vovó, aquela que representa o universo feminino
e que o transmitiu a filha e a neta, ser devorada e depois vomitada
pela goela deste lobo que representa o instinto a atravessar a razão,
tornando-a mais fluídica,
plena,
leve e saudável,
atributos bem feminino.

Todas
as mulheres que se encontram cobertas de razão estão sendo
possuídas pelo Lobo Mau. Para conquistarem a razão atravessada
pelos instintos, deverão permitir que sua menina, Chapeuzinho,
questione, seja curiosa e faça perguntas para então, enfrentar os
conflitos e viver a vida que não está na razão engessada, está
sim, nos sentidos: boca, dentes, mãos, olhos e orelhas, instintos
que qualificam a razão, transformando-a em razão sensível.

No
conto, Chapeuzinho, finalmente grita por auxílio e por sorte, um
grupo de caçadores ia passando por ali bem na hora, e seus gritos
chamaram sua atenção.

Ouviu-se
um tiro e o lobo caiu no chão, a um palmo da menina.

Todos
já iam comemorar, quando Chapeuzinho falou:


Acho que o lobo devorou minha avozinha.


Não se desespere pequenina. Alguns lobos desta espécie engolem seu
jantar inteirinho, sem ao menos mastigar. Acho que estou vendo
movimento em sua barriga, vamos ver…

Com
um enorme facão, o caçador abriu a barriga do lobo de cima abaixo,
e de lá tirou a vovó inteirinha, vivinha.


Viva! Vovó!

O
mundo feminino, agora possuidor dos sentidos, emerge vitorioso e
fazendo a todos felizes. O ranço, o ressentimento, as duras palavras
cobertas de razão, a moral rígida e exacerbada, o controle e poder,
as diversas formas de chantagens emocionais, a atitude estoica e o
desejo ascensional, foram transformados através do contato e da
vivencia perante os sentidos.

Mas,
antes, precisou ser devorado. O desenvolvimento do feminino abriga
enfrentamentos com o Lobo Mau e tudo aquilo que ele representa.

Enfim,
o caçador vem em auxílio daquela que está aberta e pedindo sua
proteção.

No
início havia apenas mulheres, depois surge o masculino negativo,
junto consigo traz o aprendizado e o conhecimento dos sentidos e
agora vem o caçador, o masculino positivo que salva o universo
feminino de seu predador.

Em
primeiro lugar o caçador representa o masculino não mais
negligenciado e ignorado pelo ego e que já admite que as forças
masculinas exista e que não são tão somente predadoras, muito pelo
contrário, podem ser apaziguadoras e trazer leveza ao mundo
essencialmente feminino.

Em
segundo lugar, o caçador especificamente, sai em busca de animais na
floresta. Ele os detém com armadilhas e sagacidade. O caçador não
usa apenas sua razão, usa seus sentidos e é por isso que obtém
sucesso. Se ele usasse apenas a razão, seria mais um desses que tira
proveito financeiro da caça, pode-se dizer que ao invés de ser um
caçador ele seria um predador ao estilo do Lobo Mau.

Em
nossa história, o desejo reprimido que deu origem ao desenvolvimento
do feminino, foi relativo ao desejo sexual. É bastante temeroso sair
de um estado para o outro e geralmente, o que as pessoas mais temem é
o oposto da situação, a exacerbação daquilo que foi reprimido.

Este
temor é validado à medida que a gente observa o quanto as pessoas
vão de um extremo ao outro. No entanto, ir de um extremo ao outro
significa que o conteúdo não foi elaborado, de forma a assustar e
se exacerbar sem que haja
regulagem.

O
conteúdo aqui apresentado foi devidamente enfrentado e admitido pelo
ego que lhe deu o devido valor e soube que do mesmo modo que foi
devorado pelo desejo ascensional ou instinto religioso, poderia ser
devorado pelo instinto sexual.

Como
no enfrentamento da situação percebeu a capacidade do masculino e a
beleza dele, abriu caminho para ser cuidada pelo caçador.

O
caçador coloca limite ao instinto para que o ego não se entregue
aos seus desejos de violência, de brutalidade e selvageria.

E
assim:

Todos
comemoraram a liberdade conquistada, até mesmo a vovó, que já não
se lembrava de estar doente.

“O
lobo mau já morreu. Agora tudo tem festa: posso caçar borboletas,
posso brincar na floresta.”

Dessa
vez, os sentidos não perderam e nem ganharam, tudo ficou ajustado
entre a razão e os instintos. Todos podem comemorar a liberdade
conquistada, a liberdade de ir e vir na floresta, apreciar os
sentidos instintivos sem ser por eles devorado.

Chapeuzinho
Vermelho é um conto que nos alerta sobre o perigo em se conservar
menina ao invés de se tornar mulher capaz de se guiar e conter seus
instintos sem, necessariamente, extirpá-los da consciência ou por
eles ser possuído.

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sonialunardon@gmail.com

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