Vem lá da nossa Amazônia essa linda Lenda do índio Norato:
Uma das índias da tribo ribeirinha ficou grávida da cobra Sucuri, e logo nasceram os gêmeos Norato e Maria Caninana. Tendo eles corpos de cobra, a mãe foi se aconselhar com o pajé, que a orientou a colocá-los em seu habitat natural, que seria as águas do rio Tocantins. Aliviada com o destino dos filhos, que lhe pareceu o mais acertado, assim o fez.
Norato e Caninana se desenvolveram em serpentes imensas e, como seres encantados, podiam se transformar em embarcações. Enquanto Norato se divertia com esses encantamentos e protegia os humanos de desastres e afogamentos, Caninana usava seus encantos para torturá-los e gerar todo tipo de perversidade e morte contra eles.
A gêmea de Norato era seu oposto. Norato tinha senso ético e de benevolência; Caninana visava apenas o caos.
Norato gostava de fazer suas visitas à sua mãe. Sua irmã jamais foi, e nessas visitas ele se desprendia de sua casca de cobra, que deixava à beira do rio, e se transformava num rapaz alto e bonito. Caminhava pensativo e sempre desejando ser gente. Gostava de bailar, assim como todas as criaturas d’água.
A perversidade que o acompanhava em forma de Caninana o afetava e pesava contra sua disposição em se livrar do corpo de cobra. Solucionou o problema dando fim à sua gêmea e à sua maldade.
Agora só precisava desencantar. Para isso era necessário que alguém fosse até sua casca de cobra quando estivesse ali na beira do rio, colocasse leite em sua boca e desse uma facadinha em sua cabeça até sangrar. E pronto! Norato seria gente para sempre!
Por ocasião de uma visita, pediu à sua mãe. Ela até foi, mas ao chegar perto da imensa casca de cobra se amedrontou e fugiu. Norato também pedia para diversos amigos que fazia por ocasião de suas saídas noturnas para dançar, mas nenhum deles se atreveu.
Até que, por fim, encontrou um destemido soldado que finalmente o desencantou. E Norato agora vive como gente em sua tribo, junto aos seus filhos e netos.
A sabedoria daqueles índios nos ensina que uma mamãe pode, sim, engravidar de uma Sucuri, de um vertebrado que encarna a psique inferior, o psiquismo obscuro, incompreensível e misterioso do humano, e que desse encontro de humano e serpente se produz um gemelar, um duplo, que o filósofo Gaston Bachelard vai denominar como um dos arquétipos mais importantes do espírito humano, que não cessa de se desenrolar, desaparecer e renascer, uma coisa primordial e indivisível.
Senhora do princípio vital e de todas as forças da Natureza, conhecida também como a Serpente Cósmica, origem da vida e do cosmos.
Sugiro assistirem ao filme colombiano de nome El Abrazo de La Serpiente, dirigido por Ciro Guerra, onde essa imagem arquetípica é tratada de modo excepcional através das personagens indígenas.
Nosso Norato e nossa Maria Caninana encerram em si mesmos esse poder da natureza que o humano contém em si por ser ele também parte da natureza.
A responsabilidade do humano está em saber conduzir esses aspectos, de modo a ter em mente a redução de danos, posto ser o homo sapiens o único habitante planetário a ter consciência de suas possibilidades, tanto do aspecto Norato de ser quanto de seu aspecto Caninana de ser.
A princípio, Norato dá conta de suprimir seus impulsos caóticos e destrutivos de Caninana. Mas isso não basta. Ainda está encantado. Não basta reprimir nossas forças destrutivas, não basta! Temos a arrogância de acreditar que podemos matar um determinado instinto… É muita pretensão!
É preciso derramar o leite em sua boca, que é o símbolo primordial do conhecimento emocional e afetivo. Para desencantar, para escapar de um determinado poder neurótico, é necessário conhecimento emocional.
Em seguida, é preciso completar o ritual: fazer sangrar sua cabeça. Mediante o conhecimento emocional e afetivo, junta-se o conhecimento da razão. Então, bum! Insight… Agora, sim, a compreensão chegou em sua totalidade e desencantou.
Há um outro aspecto na pessoa que está encantada: muitas vezes, ela se orgulha de seu encantamento, de sua doença mental que causa medo nas pessoas. Ainda bem que esse não era o caso de Norato.
Norato deseja possuir a sabedoria, tirar o véu, viver a vida e não a ilusão do encantamento.
Primeiramente, busca o auxílio através de sua mãe. Mas logo percebe que não é a mãe que vai promover o desencanto.
Os amigos podem até se compadecer, mas eles também não poderão viver o seu processo. Cada qual tem o seu próprio processo.
Enfim, Norato encontra o soldado, o seu soldado destemido. Aquele sujeito que nos habita e que faz parte do arquétipo do herói, que nos vai salvar de nossa sombra, de nosso aspecto mais tenebroso, que vai dar continência ao nosso aspecto destrutivo e caótico de ser.
O soldado representa as forças de seu desejo de dominar sua dualidade, a bravura, a astúcia e a estratégia de se conduzir de modo a compor sua natureza, eliminando os excessos e se reconduzindo com razoabilidade, garantindo uma vida de gente.
Lunardon Vaz
10.08.2020