O gênio de Godard faz transferir para a tela uma esplêndida
discussão entre Texto e Imagem abordando conceitos e fazendo
críticas ora irônicas, ora inteligentemente sutis dispostas em três
reinos: Inferno, Purgatório e Paraíso.
REINO I – INFERNO
E
“assim, nos tempos
das fábulas, após
as inundações e
o dilúvio…”, ou seja, imediatamente após a Salvação
Divina da Barca de Noé, “homens armados surgiram
da Terra e se exterminaram”. É esse o
conceito da Divina Salvação exposta por Godard que nos incita a
repensar e ampliar as idéias ou então, negar tal possibilidade e
não mais assistir ao filme, ou assistir ao filme e com as idéias e
conceitos bem cristalizados e engessados não se dar conta da sua
interpretação daquilo que se chamou Salvação Divina. É uma das
opções que infelizmente, ocorrem com muito maior freqüência.
Uma
das primeiras imagens, que podemos classificar conforme o próprio
Godard ensina em plano e contraplano, trata de
um bando de macacos saltando pelas águas de um rio e imediatamente
após um bando de soldados armados andando pelo
leito do rio.
Assim, plano e contraplano
insere uma nova questão: a selvageria dos homens, bem como sua
insensatez em lidar com os instintos. Negando, só o que conseguem é
que eles se revoltem e surjam de maneira transviada. Se os homens e
mulheres vivessem dia-a-dia catando a unha
seu instinto, sem negá-lo, mas negociando com eles, a selvageria não
teria espaço. Para isso há de se ter coragem e honestidade para com
aquilo que deveras sente. Infelizmente, a maioria dos líderes não
possui energia psíquica suficiente para tal, além do que os líderes
preferem exercer seu poder de forma selvagem,
através de estratégias que vendem como sendo amor,
caridade, piedade, justiça, etc.
Ao
olharmos bem, poderão ver os dentes afiados e a boca arreganhada
pronta para dilacerar sua presa e saquear seus bens e tesouros
naturais por detrás da máscara .
Enquanto
surgem imagens de guerra, morte, perseguições religiosas e
enforcamentos, que vem desde o tempo das fábulas até as guerras
mais atuais que utilizam satélites e aviões, uma mulher implora a
Deus nas mãos de um soldado: “Perdoa-nos as ofensas
como nós perdoamos a quem nos tenham ofendido. Como nós
perdoamos, perdoa-nos”. Assim, o texto e a imagem se
contrapõem, significando que o instinto selvagem e o instinto
religioso se coadunam para formar o primeiro reino de Godard.
Imagens
aceleradas de corpos carbonizados, Alemanha nazista, crianças
morrendo e ou brincando de guerra, soldado rindo, freiras fazendo
seus votos, explosões e a pergunta na tela: “Você se lembra de
Sarajevo?”. Enquanto isso o texto está em forma de prece. É
declaradamente uma crítica sobre a nossa ocupação da existência.
Como estamos ocupando nossa existência?
Essa é a nossa música! Até quando? O esquecimento aqui é uma
negação da existência.
O
texto se modifica e vem uma nova proposta de reflexão: “Ora, je
et notre!”. Em português
significa: Eu estou no outro. Ora, se eu estou no outro, tudo aquilo
que faço ou que deixo de fazer para o outro estou fazendo ou
deixando de fazer para mim e para aqueles que virão através de mim.
A
consciência desse processo de individuação
nos insere no mundo como autores e co-autores dos reinos apontados
por Godard.
A
morte como o possível do impossível
ou como o impossível do possível vem
no texto e nas imagens caracterizada como o absurdo das ações
desumanamente humanas. Godard nos remete à desesperança da fé por
esta não impedir as atrocidades desde que o mundo é mundo.
REINO II – PURGATÓRIO
Já
não se trata da questão de fé que se nota no purgatório. Trata-se
agora das idéias e ideais de homens e mulheres.
Godard
traz a lembrança de Hannah Arent cujo pensamento sobre a ação
política defende que a cidadania é apenas um modo de legitimar os
Governos por meio de eleições. Sua filosofia trata da experiência
da polis grega e tem muito do contexto da Alemanha dos anos 30,
sempre preocupada em estabelecer novos conceitos e valores humanos em
prol de uma maior igualdade na diversidade.
Nos
lembra também de Che Guevara um dos maiores guerreiros pela paz, são
frases dele: “Vale milhões de vezes mais a vida de um
único ser humano do que todas as propriedades do homem mais rico da
terra”; “Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês
qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte
do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário”.
Confere
destaque a Henri Curiel militante comunista e ativista político. Em
1914 militava no Cairo (Egito). Morto em Paris em 1978, sua morte é
ainda cercada por mistérios e são muitos seus atuais seguidores.
Ainda
cita Mao Tsé Tung e outros que não nomeia.
Todos
eles lutavam pela paz. Todos eles tinham uma idéia e conceito.
Tinham e defendiam um texto, mas a imagem que se seguiu a partir do
texto que previa e ambicionava a paz,ou melhor, a igualdade na
diversidade, trouxe morte e guerra.
No
Purgatório, as idéias e as imagens se contrapõem bem como no
Inferno. A diferença é que lá o texto é a fé e aqui o texto são
as idéias, as imagens continuam sendo as mesmas: explosões,
dilacerações, flagelos, miséria, morte, preconceitos,
desigualdades, hipocrisias, falácias, violência moral, violência
emocional e psicológica e todo o lixo corruptível e corrupto.
Uma
frase do filme: “Matar um homem para defender uma idéia,
não é defender uma idéia. É matar um homem”.
Não
se deve esquecer que o revolucionário também está sendo morto por
aqueles que também defendem uma idéia diferente da dele. A
princípio o revolucionário não deseja matar, está apenas se
defendendo. Porém, aquele que está do outro lado considera que
também não deseja matar e que está apenas se defendendo.
E
assim, como dizem no filme: “Quando tudo termina nada é
como antes. A violência deixa marcas profundas… A confiança no
mundo que o terror aniquila é irrecuperável… A violência rompe a
linha da vida… O sobrevivente não é só outro, ele é
um outro. O corpo é uma arma em potencial. Cada um sabe onde atingir
a si mesmo, (portanto), sabe onde atingir o outro”.
Tanto em Inferno quanto em Purgatório, Godard se coloca ou como
pessimista ou como aquele que aponta com sutileza e sabedoria que o
sistema vigente, ou seja, o
capitalista/materialista, assimila tanto a fé quanto o
mundo das idéias de modo a fazer voltá-las contra si mesmo
promulgando e engordando o próprio sistema.
Na
embaixada francesa, o embaixador já foi um revolucionário que agora
não quer perder seu emprego. Nada mais comum embora já seja
corruptamente considerado normal. Normatizado pelo sistema.
Através
desse personagem, Godard explora uma antiga discussão entre a
prática e a teoria.
O
embaixador diz que os jornalistas estão na espera de noticiar a
realidade desde Homero, ou seja, há 8 mil anos! De modo que também
a mídia está sendo denunciada como favorável ao sistema
e por este normatizada.
O
escritor que se junta a ele afirma que aquele que age não tem
capacidade de contar e que aquele que conta não sabe do que fala.
O
embaixador polemiza e acredita que aí existe contradição. De
qualquer modo, a discussão não se faz, fica assim, é tão somente
mencionada não questionando a tal falácia.
Godard
parece dizer que essa discussão entre a prática e a teoria é mais
uma forma de alimentar o sistema. Pois, em
seguida o filme vem contemplar os poetas e sua visão de mundo.
Uma
garotinha parece estar indo a escola. Entra em um castelo em ruínas
e ali há um senhor que parece ser um fiscal. Escreve, escreve e se
aliena completamente de tudo a sua volta. O livro que a garotinha
coloca sobre sua mesa é imediatamente jogado para uma pilha de
livros daquelas que parecem que vão ser queimadas.
A
garotinha é completamente ignorada. Será assim mesmo que ocorre no
processo educacional? Nossas crianças seriam ignoradas?
Depois,
há um apelo para que haja poetas e que somente eles poderão salvar
o mundo, talvez por que eles saibam ler os símbolos que cercam a
humanidade.
Poetas
que possam causar uma revolução em que se acredite numa “
indeterminável força de criação, que as lembranças se
fortaleçam, que os sonhos possam predizer e que as imagens se
corporifiquem”.
Surge
então os índios, os primeiros homens dessa grande morada e que
sempre estiveram em sintonia com a natureza, através de rituais e
simbologia.
Diante
do senhor que escreve e confere sem parar e que o ignora, o índio
afirma que o homem branco jamais entenderá as palavras antigas dos
espíritos que vagam entre o céu e as árvores. Que Colombo
vasculhasse o mar para achar a Índia, estava em seu direito. Ele
pode mudar o nome dos índios, pode chamá-los de vermelhos, pode até
mesmo modificar a natureza, mas fora de seu mesquinho mundo de seus
mapas, ele não é capaz de se manter feito os índios que são
homens que nascem iguais ao ar e a água.
O
homem autodenominado civilizado pode massacrar a identidade indígena,
roubar suas terras e subsistência. Pode mudar o curso do rio, mas
ainda assim, é incapaz do mais singelo, ter a sabedoria de se fazer
igual a todas as coisas.
O
índio lança um grande desafio, mas que não encontra escuta por
parte dos brancos: Já é hora de nos encontrarmos frente a frente,
na mesma era e sabedores de que nós dois somos estrangeiros na mesma
terra.
Na
seqüência, Olga entrevista um escritor e dessa conversa surge a
certeza de que não há vitoriosos. Estamos todos derrotados. A
guerra e a violência sejam de que natureza for, promove apenas
sobreviventes derrotados.
A
índia vai descendo as escadas e é como se ela representasse seu
povo que desceu
para
o inconsciente coletivo. Enquanto desce vai se caracterizando em
comportamentos iguais ao do homem branco e assistimos ao seu
deslocamento diante da “civilização”. Talvez o povo indígena
seja uma lenda. Mas, carrega seus fortes símbolos que ainda gritam
se fazendo ouvir na consciência de maneira que ainda existe os
índios paramentados em frente a Olga , a qual desistiu de tirar
fotos de índios “civilizados” que apareceram próximos a ponte.
Os conhecedores da simbologia, os que são capazes de ler além do
texto, ainda poderão resgatar a memória e sabedoria do índio.
Em
seguida, Godard ensina que a imagem tem grande força, grande energia
psíquica e que quando a tentamos exprimi-la em palavras, essa força
perde um pouco de sua intensidade.
Para
ver a gente diz “olhe” e para imaginar
a gente diz “feche os olhos”. Porque aquilo que
caracteriza uma imagem é a emoção por ela emanada. Assim, fecha-se
os olhos para ver a imagem e sentir seu poder.
No entanto, a imagem que não carrega em si uma emoção, não possui
nada além do vazio.
Os
homens e as mulheres são criadores do universo a partir da
imaginação. Tudo que se cria, com certeza, antes surgiu em forma de
imagem. Isso porque o primeiro pensamento tanto ontológicamente
quanto filogenéticamente falando, se dá por imagem e é chamado de
pensamento primitivo, posteriormente
desenvolve-se na humanidade e no indivíduo, a segunda forma de
pensar já constituída de racionalidade que é chamado de pensamento
secundário.
Godard
agora explica sobre as expressões conhecidas do cinema, campo
e contracampo e faz uma crítica sobre os descuidos e
banalização por parte dos profissionais do cinema.
É
aqui nessa fase do filme onde mais se denuncia a banalização
cotidiana. Desde o inicio do filme, enquanto se está falando sobre
coisas de primeira ordem para a humanidade, outros estão falando,
fazendo barulho, não prestando nenhuma atenção, ou seja, durante
todo o filme ocorre ruído na comunicação.
Godard
mostra Campo e Contracampo através de fotos. Numa delas os
israelitas entram na água rumo a terra prometida e na outra os
palestinos entram na água rumo ao afogamento. O povo judeu se tornou
uma ficção e o povo palestino um documentário. No entanto, não há
uma marca de diferença entre as fotos.
O
campo do texto cobre o campo da visão de modo que os fatos não
falam por si mesmo por muito tempo. É necessário o texto para que
ele reviva e marque na memória. Como por exemplo: Em 1938,
Heisenberg e Bohr passeiam pelo interior da Dinamarca e diante do
castelo de Elsinor e o sábio alemão diz que ele não possui nada de
extraordinário, de modo que o físico dinamarquês responde que
basta dizer que aquele é o castelo de Hamlet para que se torne
imediatamente extraordinário.
E
com Campo e Contracampo, Elsinor é o real enquanto Hamlet é o
imaginário.
O
imaginário é a certeza enquanto que o real é a incerteza. O texto
determinou a imagem. Desse modo, novamente, Godard aponta para mais
uma discussão que pode mesmo sugerir que nós estamos sempre vivendo
em auto-engano e que por outro lado, ainda não temos um olhar
suficientemente estético para priorizar aquilo de fato determina
nossa ocupação na existência.
Diante
de todos esses conceitos o que é afinal a Vitória? O que é a
Libertação?
O
primeiro animal visível a surgir foi a luz e Godard diz
que o princípio do cinema é o de ir até a luz e apontá-la para
nossa noite. Nossa Música.
Enquanto
isso Olga está descobrindo seu caminho e para onde deseja ir.
Acredita que deve haver uma ponte entre o passado e o futuro. E que
entre nós, eu e o outro, existe uma verdade que é a ponte. Assim é
que somos todos culpados de tudo e de todos. A combinação do
sofrimento e culpa pode vir a ser uma ponte entre nós, entre ele e
eu, entre eu e o outro.
Em
imagem Olga vê: São duas pessoas lado a lado, uma delas
sou eu. Ela, eu nunca vi, mas me reconheço.
Mas, não me lembro de nada disso. Deve ter acontecido longe daqui ou
mais tarde.
Essa
identificação que Olga faz com a outra pessoa que passa por dores e
paixões, das quais ela mesma não é protagonista, mas por
identificação, reconhece em si. Essa visão de que eu estou no
outro, é a ponte a ser restaurada.
Mas,
para Olga o único problema filosófico realmente sério é o
suicídio. Talvez com sua morte pela paz possa de fato, estar fazendo
algo de peso para a construção da ponte. Enganou-se, porque sua
morte também foi banalizada e assimilada pelo sistema.
Porém,
quando ela diz q a liberdade será total somente quando viver ou
morrer for indiferente, ela levanta a problemática de existir pela e
através da intensidade e do vir-a-ser. Possuir tal liberdade entre
viver e morrer corresponde a intensificar tudo, arriscar tudo, viver
de modo a acolher tudo que vem de peito aberto. Isso de fato, é tão
somente para os fortes. Agora, viver em tédio, onde viver ou morrer
é indiferente por puro tédio ou por desejo ascensional, daí
estamos falando de baixíssima intensidade de vida. É a não vida, é
a negação dela, e isso é para os fracos.
REINO III – PARAISO
Aqui
Olga repete a fala: São duas, lado a lado….
Talvez se nos identificarmos com sua dor e culpa possamos criar a
ponte. Para isso é preciso a imagem, porque o texto já cobriu a
visão do fato. De modo que, embora o dia seja claro… Embora se
tenha consciência da luta e do suicídio pela paz, não dá pra se
ver de onde Olga partiu. Não há um registro com intensidade afetiva
e emocional (com grande carga psíquica a ponto de ser
transformadora), na memória das gentes em relação a própria causa
e motivo de onde partiram aqueles que procuram desesperadamente
modificar a situação da miséria de guerras e de violência.
O
Paraíso de Olga está ironicamente guardado pelos soldados
da paz e ela volta a primeira Eva que comendo a maçã,
logo será expulsa do paraíso. Ou significando que, ao obter um
certo conhecimento de sua ocupação da existência, você se verá
obrigado a fugir do Paraíso assim sustentado por amigos da paz.
Para
encerrar, uma das falas do filme:
“O
que vemos diante de nós é uma história sem pensamento, como se
herdada de uma vontade impossível. Mais do que nunca, estamos
diante do nada”.