No folclore brasileiro consta ao menos três personagens que os pais utilizam para gerar medo nas crianças mais travessas e naquelas que não querem ir dormir: a Cuca, o Homem do Saco e a Cabra Cabriola.
São eles uma espécie de fantasma que assombra na escuridão da noite. Estão presentes no imaginário de todo o Brasil. É uma aparição que não está localizada em nenhuma região específica, mas em toda parte.
Embora se conheça seu aspecto, usualmente assustador como o boi da cara preta que faz parte de uma certa cantiga de ninar, ninguém até hoje viu quem foi carregado no saco e nem como isso foi feito.
No Brasil, a Cuca tem aspecto humano de uma velha arqueada pelo tempo. O Homem do Saco é muitas vezes confundido com o preto velho, muito citado na religião umbandista, cuja origem é africana. Já a Cabra Cabriola tem um aspecto mais assustador, metade animal e metade monstro.
Eles entram pelo telhado, ou pela janela, ou pela porta, e as crianças tremem de medo buscando ficar próximas aos seus pais.
Cada um deles pode estar debaixo da cama, dentro do armário, ou lá, bem no canto mais escuro do quarto de dormir.
Todos eles perfazem o arquétipo do Bicho Papão. Quem não se lembra da cantiga:
“Bicho Papão sai de cima do telhado, deixa esse menino dormir sossegado”?
Por que será que tudo que nos proporciona medo teima em se esconder no escuro?
Primeiramente, porque nem sempre a espécie homo sapiens viveu em casas ou prédios cercados de vizinhos. Houve um tempo em que éramos coletores e vivíamos nos ambientes naturais, como a savana, a beira do rio e as florestas. Vivendo assim, é certo que desenvolvemos uma atitude de alerta para nos defender do perigo de sermos atacados por predadores. A preocupação maior era a de cuidar com os lugares escuros e com a profundeza da noite.
Instintivamente, não nos sentimos exatamente à vontade e relaxados ao atravessar veredas escuras ou caminhar por ruas desertas no período da noite.
Por outro lado, a criança absorve seu clima emocional do lugar em que se encontra. Daí, dependendo da situação emocional que a cerca, ela pode sofrer de ansiedade, angústia da separação ou desamparo. Diante desse contexto, irá fantasiar monstros, porque a criança ainda não possui o estratagema racional.
Sua percepção acontece de modo subliminar e instintivo. Assim, lida com a situação através de projeções, apresentando temores e sofrimentos, criando seus monstros ou mesmo fobia por um determinado inseto ou animal.
Por isso, é sempre salutar envolver a criança em um ambiente tranquilo que lhe proporcione segurança emocional e afetiva, bem como tratar psicologicamente a agressividade ou qualquer outro sintoma neurótico, como ansiedade e depressão, para não transmitir à criança os pesadelos que, a princípio, são seus próprios pesadelos.
O adulto também faz suas projeções quando em algum conflito emocional não consciente, determinando a projeção desse conteúdo não elaborado em seus próprios monstros, que também podem habitar a escuridão ou surgir como uma presença atrás de si ou sentada na cama ao dormir.
Em última instância, o Bicho Papão representa conteúdo psíquico não elaborado de modo racional e emocional.
Sendo a saúde mental a mais importante – dela depende a funcionalidade do ego, a inteligência emocional, a disposição para cumprir seus propósitos e a diminuição da chance de se criar uma patologia de origem psíquica através do estabelecimento de neurose ou somatização –, se existe para ti o Bicho Papão em qualquer de suas formas, trate de cuidar de seu estado mental do mesmo modo como trata sangramentos.
A psique sangra de modo simbólico. Não se vê o sangue, mas isso não quer dizer que ela não esteja repleta de feridas necessitando de seu cuidado.
Se acaso não mantiver um cuidado com sua psique, ao se deitar o Bicho Papão lhe aparecerá em uma de suas formas mais fantasiosas, e você não irá conciliar o sono. Tomar medicação para dormir e assim escapar do Bicho Papão não significa que ele deixou de existir. Ele irá te acompanhar e se fará presente em seu cotidiano quando algo do ambiente se conectar com alguma memória emocional ainda não percebida pelo ego.
Então você dirá:
“Não entendo por que estou com depressão, não há motivo para isso.”
“Não entendo por que apresentei síndrome do pânico, não sei de onde veio isso.”
“Não entendo por que tive esse comportamento irracional, nunca quis ferir ou magoar as pessoas que amo.”
Enfim, o Bicho Papão te colocou no saco e desapareceu sem deixar vestígios.
Lunardon Vaz
23.09.2020